Prata e Bronze

segunda-feira, 6 de abril de 2015

DC Preto e Branco, Allan Harvey

Essa matéria saiu originalmente em Back Issue 10, de Junho de 2005 escrita por Allan Harvey. Ela fala de algumas oportunidades perdidas e de títulos que poderiam ter entrado para a história. Do jeito que aconteceu, tornou-se apenas mais um dos tantos rodapés da História das Histórias em Quadrinhos.


No início dos anos setenta, os quadrinhos estavam encarando um futuro incerto. A exposição nas bancas estava diminuindo e, como causa ou consequência, as vendas estavam caindo. O impulso que a Marvel havia conseguido quando alcançou audiências nas universidades - sem falar no curto interesse gerado pela série de TV Batman - já havia passado. As editoras de quadrinhos estavam todas desesperadamente tentando encontrar o elusivo "algo" que traria de volta os leitores.

As revistas em quadrinhos em preto e branco, existiam como um nicho de mercado desde os anos 50, quando a EC trocou o formato de seu altamente popular MAD e o transformou em magazine. Enquanto os outros experimentos da EC nessa direção (as revistas de "Picto-Ficção") logo sumiram de vista a MAD tornou-se cada vez mais popular, se tornando um fenômeno.

No meio da década de sessenta, James Warren começou a publicara Creepy. Essencialmente uma recriação em preto e branco da linha de terror da EC, usando inclusive muitos de seus criadores. A Creepy teve um sucesso bem razoável. Uma publicação irmã, a Eerie, assim como títulos como Blazing Combat, 1984 e, é claro, Vampirella, asseguraram a Warren como a principal editora de magazines em preto e branco.






Talvez inspirada pelo sucesso da Warren, a Marvel decidiu publicar uma revista em 1968. O Homem Aranha era o seu personagem de maior sucesso na época, então ele foi escolhido para lançar o que se esperava ser uma nova linha de revistas. Infelizmente, a época não era apropriada para isso e The Spectacular Spider-Man naufragou nas bancas. Um segundo número acabou sendo publicado, mas desta vez em cores. E se deu tão mal quanto o primeiro

Em 1971, a Marvel tentou um outro título em preto e branco: Savage Tales. Eles claramente pensaram que tempo suficiente havia passado desde o fracasso de The Spectacular Spider-man e arriscaram uma nova revista. Entretanto, deve ser notado que, durante o ano anterior  o chefe de produção da editora, Sal Brodsky,  havia saído da Marvel para ajudar a fundar a Skywald, que publicava títulos de terror como Psycho, Scream e Nightmare. Em resposta a uma pergunta recente feita por e-mail , Roy Thomas, que era editor na época, explica que Brodsky "... viu que as revistas em preto e branco eram uma maneira de evitar [as restrições do ] Comics Code."






É possível que o aparecimento da Skywald tenha sido instrumental na decisão da Marvel de começar a produzir magazines em preto e branco. A ausência da supervisão do código parece ter tido algum apelo para o publisher James Warren. O próprio Warren viu o súbito interesse da Marvel nas revistas em preto e branco como uma ofensa pessoal. "James Warren ficou furioso com a competição", continua Thomas, "já que ele compreensivelmente achava que era uma ameaça a sua própria existência."

Savage Tales não foi um sucesso imediato (o segundo número só chegou as bancas depois de dois anos!), mas pela metade da década de setenta quase todas as grandes editoras de quadrinhos tinham a sua própria linha de revistas em preto e branco, a maioria de terror, imitando os títulos da Warren. Como teve problemas da primeira vez, a companhia não quis usar os super-heróis no novo formato, e as revistas ficaram todas sem a participação deles.

A Charlton Comics apostou na sua linha em preto e branco para mostrar as propriedades licenciadas como Space: 1999 e The Six Million Dollar Man. Até mesmo a jovem Atlas (Seaboard) teve revistas em preto e branco em sua curta existência.




Qual a razão dessa súbita popularidade na produção em preto e branco? Primeiramente, poderia haver uma economia de custos se os títulos fossem impressos sem cores e, segundo, as vendas poderiam ser mais baixas e mesmo assim dar algum luro. Isso aconteceria porque os magazines se beneficiariam de um preço de capa mais alto que os quadrinhos normais em quatro cores. O preço mais alto se justificava porque elas se destinavam a leitores adultos e os preços de tais magazines já estavam previamente determinados. Como dito por Roy Thomas, "foi por isso, pelo menos até o final dos anos setenta, que Savage Sword of Conan foi o provavelmente o título mais lucrativo da Marvel, mesmo quando Conan The Barbarian era um dos quadrinhos em cores que mais vendia."




Kirby Está Chegando!

Enquanto isso, sempre preocupada com a queda nas vendas dos títulos regulares, a DC estava tentando vários - e frequentemente inéditos - formatos para seus títulos. Eles publicaram quadrinhos com cem páginas, quadrinhos em formato tabloide, os digests (formatinhos)... Mas eles nunca realmente tentaram os magazines em preto e branco, mesmo que, naquela época, todos estivessem tendo algum sucesso com o formato. Na verdade a DC teve um breve flerte com o preto e branco. "Breve" sendo a palavra-chave aqui.

Um ressentido Jack Kirby saiu da Marvel em 1979 e chegou a DC com um monte de ideias. Provavelmente pela primeira vez em seus então trinta anos de carreira estavam dando a ele carta branca para criar o tipo de revistas que ele queria. Morando na costa oeste, ele seria o seu próprio patrão, editando e supervisionando a sua própria linha de quadrinhos, recebendo, o que ele esperava que fosse a menor interferência possível de seus chefes em Nova York.

Trabalhando no ápice de suas consideráveis habilidades, Kirby rapidamente criou uma linha unificada de quadrinhos: O Quarto Mundo [New Gods, Mister Miracle, etc]. Ao mesmo tempo, ele queria expandir os horizontes para os quadrinhos, indo além do que ele via como as limitações do tradicional formato de quatro cores. Kirby tinha uma visão de uma linha de magazines que teriam os mais altos valores de produção, anúncios sofisticados, contos de autores famosos e o mais importante, quadrinhos em cores. "Jack nunca gostou de quadrinhos em preto e branco", diz Mark Evanier, que foi assistente de Kirby mais ou menos nessa época.

Kirby chamou essa linha de quadrinhos que ele estava propondo de "Speak Out" (N.T.: algo como "ter opinião"), e inicialmente enviou três títulos para a aprovação da DC: Spirit World, In the Days of the Mob e True Divorce Comics.





Não tão entusiasmada com a linha "Speak Out" como estava Kirby, a DC rejeitou de cara True Divorce Cases, talvez porque não era exatamente o título de "romance" que eles estavam esperando. O trabalho continuou em Spirit World e In the Days of the Mob, mas as revistas foram "rebaixadas" para o formato preto e branco e em papel jornal, provavelmente graças ao desejo da DC de concorrer com a produção da Marvel e da Skywald. Kirby ficou desapontado, mas permaneceu profissional e produziu o trabalho com a melhor de suas habilidades.

Spirit World, quando foi finalmente publicada, passou a ser uma revista similar no tom a Creepy e a Eerie. Ela mostrava eventos sobrenaturais, frequentemente horríveis, sendo investigados por um certo Dr. Leopold Mass, que também era o "anfitrião" da revista, Nessa função, o barbado Mass fazia um papel não muito diferente do Guardião da Cripta nos títulos da EC ou ao Tio Creepy, nos da Warren.





Se formos analisar, In the Days of the Mob parece ter sido uma escolha estranha de tema. Ela lidava com eventos, alguns reais, alguns fictícios, da Era da Lei Seca: os gloriosos anos vinte e trinta. Entretanto, apenas alguns anos antes, Bonnie and Clyde (1968) tinha sido um grande sucesso e logo após a publicação de In the Days of the Mob, O Poderoso Chefão levou multidões aos cinemas.






Assim como Spirit World, In the Days of the Mob tinha o seu próprio anfitrião: O Diretor Fry. Não muito diferente de um burocrata qualquer usando um terno listrado. Fry administrava os presos no Inferno, mostrado engenhosamente por Kirby como uma penitenciária gigante. Quando Fry chamava cada um dos detentos, nós descobríamos a história de cada um deles e seus atos nefandos na Terra. Al Capone apareceu várias vezes.

Publicados na segunda metade de 1971, tanto Spirit World quanto In the Days of the Mob não conseguiram cativar os leitores. Posters promocionais foram produzidos para as bancas e assim ajudar nas vendas, mas é bem improvável que eles tenham feito alguma diferença. E também não sendo nem quadrinhos como os leitores estavam acostumados, nem revistas propriamente ditas, achar um lugar ideal para eles serem colocados nas bancas era um tanto difícil. Os fãs de quadrinhos convencionais não procuravam na seção de magazines enquanto os potenciais leitores "maduros" nunca saberiam das novas publicações se elas fossem colocadas entre os quadrinhos para crianças.

A DC fez alguns anúncios em seus títulos regulares, mas parecia que eles tinham pouca fé nas suas novas revistas. A famosa "DC Bullet", o logotipo da companhia,  não aparecia em lugar nenhum dos novos títulos e os leitores acabaram acreditando que "Hampshire Distributors Ltd" era responsável pela publicação. Mas dentro da revistas Kirby era listado como editor, junto com o então Diretor Editorial (que logo se tornaria publisher) Carmine Infantino, deixando o leitor mais observador com certa dúvida sobre a verdadeira origem das revistas.

Sem Chance Alguma

True Divorce Cases, que foi rejeitada logo de cara, pode ser vista hoje (com o benefício do tempo) como um dos melhores trabalhos de Kirby no período. Um título de romance, a revista contaria histórias picantes de amores que não deram certo e ofereceria algumas surpresas genuínas.






Uma das histórias preparadas para True Divorce Cases mostrava um jovem casal afro-americano. Por alguma razão, alguém na DC pensou que essa seria a história padrão do título e que daria a base ideal para uma revista direcionada para o público negro. Foi pedido a Kirby que ele desenvolvesse mais essa ideia. Ele então produziu um outro título completo: Soul Love. Kirby desenhou todos os personagens das histórias visivelmente de outras etnias, mas,  mais uma vez,  parece que a DC se acovardou e muito da etnicidade foi modificada quando as histórias foram arte-finalizadas. Não adiantou muito, já que de novo a DC rejeitou toda a revista depois que ela estava pronta.








Pouco progresso estava acontecendo nos outros títulos propostos da linha "Speak Out". Deveria existir um título de humor baseado no trabalho do cartunista da Mad, Sergio Aragonés, que já havia contribuído com várias páginas de cartuns tanto para Spirit World quanto para a In the Days of the Mob. Também havia planos para uma revista semi underground e risqué que em certo ponto começou a ser chamada de Uncle Carmine's Fat City Comix. Nem é preciso dizer que nenhum dos títulos foi muito além de algumas histórias de amostra. As páginas de "Galaxy Green", de Kirby, que são vistas ocasionalmente eram destinadas a Fat City, juntamente com trabalhos de alguns notáveis, como Steve Ditko.

Algumas das histórias que Kirby preparou para os títulos abortados acabaram sendo impressas. Os primeiros três números de Weird Mystery Tales, da DC, tiveram histórias que deveriam ter sido publicadas no segundo número de Spirit World e uma outra apareceu em Forbidden Tales of Dark Mansion número 6. Naturalmente, essas quatro histórias foram impressas em cores. Uma única história, destinada ao segundo número de In the Days of the Mob viu a luz em The Amazing World of DC Comics, impressa em seu preto e branco original, mas por algum motivo obscuro a DC reletreirou a história. Arte e histórias de True Divorce Cases, Soul Love e outros títulos abortados foram reproduzidas em vários números de The Jack Kirby Collector, publicado pela TwoMorrows.

Com o insucesso das revistas de Kirby, a DC desistiu de qualquer outra tentativa de explorar o mercado preto e branco que foi aberto pela Warren e pela Skywald. Parece que mesmo após vários anos terem se passado e a Marvel estar com um grande número de títulos, a DC ainda olhava o desastre de vendas que foi a linha "Speak Out" e estava relutante em lançar qualquer outra coisa no formato preto e branco. "Nós ficamos surpresos da DC não fazer mais quadrinhos preto e branco", admite Roy Thomas.

Len Wein, um escritor da DC na época e mais tarde editor-chefe da Marvel, tem um ponto de vista oposto: "Eu não fiquei surpreso de forma alguma. As revistas em preto e branco nunca foram grandes centros de lucros para qualquer editora. Quando as tentativas de Jack falharam, adiantaria fazer qualquer outra coisa?"

O antigo membro do staff da DC (e o "Homem Resposta") Bob Rozakis concorda com a análise de Wein: "As vendas das revistas de Kirby não foram boas o suficiente e isso teve um papel importante para que não entrássemos naquele mercado."

Enquanto as vendas baixas podem ter sido a razão principal, possivelmente há um ou dois outros fatores também. Primeiro, a DC no começo dos anos setenta não estava preparada para produzir magazines, enquanto que o publisher da Marvel, Martin Goodman, tinha uma companhia que vinha produzindo revistas masculinas por décadas.

O próprio Goodman não estava interessado em produzir revistas em preto e branco, na verdade. "Foi Stan Lee que sempre quis publicar revistas assim", diz Roy Thomas. Além disso, Thomas fala que Goodman "sempre procurava uma desculpa para cancelar as revistas".

Por e-mail, o artista e escritor Neal Adams, que esteve muito envolvido com a DC e a Marvel naquela época, explica mais o panorama das revistas em preto e branco nos anos 70: "A Marvel estava associada a uma companhia que produzia revistas masculinas em peto e branco. Eles tinham o equipamento e a tecnologia. Foi fácil."

"James Warren comprou uma companhia que produzia revistas de terror em preto em branco. Ele comprou o negócio e apenas adicionou quadrinhos. Mais tarde, ele adicionou cores também, o que provou ser muito caro."

"Eu não acho que nem mesmo ocorreu a DC produzir revistas em preto e branco e se não fosse por Kirby eles nem teriam tentado. Revistas em preto e branco eram consideradas um retrocesso."

Apesar de Stan Lee estar disposto a explorar o mercado preto e branco, a Marvel foi bem cautelosa no início. Roy Thomas disse: "A Marvel foi bem devagar... com vários meses entre Savage Tales 1 e 2., vários entre o 2 e o 3, etc. Savage Tales 1 foi um fracasso porque a Marvel teve medo de colocá-la entre outros quadrinhos aprovados pelo Comics Code, porque, bem, ela não era."

Esse medo da editora é interessante. Apesar das diretrizes do Comics Code Authority terem sido revistas fazia pouco tempo, permitindo uma liberdade um pouco maior no que poderia ser mostrado nos quadrinhos, ainda assim ela fazia a indústria tremer. A Marvel vinha arrebatando o interesse de alunos universitários já fazia um certo tempo, mas a DC ainda se via primariamente como uma editora de entretenimento para crianças. Essa relutância de romper com o Código pode nos fornecer uma outra razão para o abandono da linha preto e branco pela DC. É verdade, In the Days of the Mob e Spirit World não eram aprovados pelo Código, mas também não eram oficialmente publicações da DC. Lembram da Hampshire Distributors Ltd?

Se as revistas de Kirby tivessem sido um sucesso, é muito provável que a DC teria se aventurado no mercado do preto e branco. Mesmo do jeito que foi, a DC reconsiderou em certo momento. Bob Rozakis: "A ideia de lançarmos mais títulos em preto e branco foi discutida em algumas reuniões editoriais, eu lembro, e pode ter havido algumas sugestões, mas eles nunca foram adiante".

Quando perguntado que tipo de ideias foram discutidas nessas reuniões, Rozakis continua: "Eu não lembro de nenhum detalhe específico. Mas eu creio que eu incluiria alguma variação dos títulos de mistério."  O Comics Code não tinha nenhuma influência no conteúdo dos títulos em preto e branco, então fazer uma revista nos moldes da Creepy poderia ter um apelo para alguns editores.

Isso talvez nos dê mais uma razão para a relutância da DC. A equipe criativa da DC naquela época tinha vontade de trabalhar em revistas em preto e branco?

Perguntado via e-mail, se ele teria desfrutado uma maior liberdade em um magazine preto e branco de Swamp Thing, Len Wein respondeu: "Não. Eu sempre achei que a cor era um elemento importante do sucesso de Swamp Thing. Além disso, havia muito pouco do que nós estávamos fazendo que não seria aprovado pelo Comics Code."

Neal Adams ajudou a trazer o Batman de volta a suas raízes de "criatura da noite" no início dos anos setenta. Será que um magazine em preto e branco para o,personagem foi discutido em uma dessas reuniões de produção da DC? "Nunca me ocorreu fazer um Batman em preto e branco", diz Adams. "Eu trabalhava muito bem com o Comics Code, eu não era limitado. Afinal de contas, eu tinha trabalhado para a Warren, então se eu tivesse vontade de explorar algo mais, eu teria feito isso".

O artista, escritor e editor da DC, Joe Kubert concorda: "Eu nunca considerei a aprovação do Código um problema, simplesmente porque eu nunca quis exagerar na violência ou ilustrações com sexo. Eu nunca me senti inibido."

No final das contas, as histórias das revistas em preto e branco da DC é curta. As vendas baixas das duas tentativas de Jack Kirby, a vontade de não alienar o Comics Code e o pouco interesse dos editores e artistas da DC, tudo contribuiu para a falha da DC em competir no mercado em preto e branco.

Se as coisas tivessem sido um pouquinho diferentes, talvez a DC tivesse tentado alguns outros experimentos quando a Marvel foi para esse lado. Enquanto a relutância em fazer super-heróis no formato preto  e branco tornaria um Batman impossível, House of Mystery e House of Secrets teria caído muito bem nesse formato e se tornado em belos magazines. Um título em preto e branco inspirado pelas criações de Edgar Rice Burroughs, editado por Joe Kubert teria feito frente ao sucesso da Marvel, Savage Sword of Conan, trazendo a fantasia pulp a uma audiência mais ampla. Quem sabe, alguns desses títulos teriam sido as maiores histórias jamais contadas.




Escritor, Artista e Fã de longa data de quadrinhos, Allan Harvey atualmente vive em Londres, mas ele fala com sotaque galês. Veja mais de seu trabalho em www.allanharvey. net.

Spirit World e In the Days of the Mob ganharam dois hardcovers em 2012 pela DC. 

Como sempre, recomendo o excelente título de análise sobre quadrinhos, a Back Issue, Os números podem ser adquiridos no site da editora, http://twomorrows.com/