Prata e Bronze

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Lanterna Verde & Arqueiro Verde e a Relevância Social






They've all come
To Look for America
All come, to look for America,
All come, to look for America.

O refrão da canção de Paul Simon, "America" mostra a busca por um país que parece ter desaparecido, junto com sua beleza física e principalmente seus ideais. Era 1968, a Guerra do Vietnã estava escalando, Martin Luther King seria morto em Abril nas ruas de Memphis e no mês seguinte, começariam os protestos em Paris.

Denny O"Neil estava completamente antenado com isso. Ele ainda não tinha chegado aos trinta na época, e para uma geração que tinha como mote "nunca confie em ninguém com mais de trinta anos", ele certamente tinha algo a dizer sobre tudo isso.

O'Neil estava, juntamente com Neal Adams, reformulando o Batman depois da série camp de 1966, trazendo de volta o personagem a suas raízes sombrias. Isso foi no início de 1970. No mesmo ano ele assumiu o título Green Lantern, que estava nas mãos de John Broome (um dos criadores do Lanterna Verde da Era de Prata) e Mike Friedrich. O'Neil inclusive havia escrito um número de Green Lantern em 1969 (número 72), em um plot pouco inspirado que envolvia uma ópera em um planeta do sistema Berliotz, com o singelo título de "O Fantasma da Opera Espacial" (Santos trocadilhos, Batman!)

O título com certeza precisava de uma sacudida, já que as vendas estavam cada vez menores. Em Abril de 1970, O'Neil assumiu o título, juntamente com Adams, que entrou no lugar do veterano Gil Kane. O Lanterna Verde era, até então, um personagem de ficção científica, assumidamente tendo as suas raízes nos pulps das décadas de 30 e 40, principalmente a série Lensman, de E.E. Smith. O'Neil resolveu transformar a série em sua visão para a sociedade dos Estados Unidos naqueles efervescentes anos.

O Lanterna Verde era, por definição, o "careta", o "tira espacial". Ele precisava de um contra-ponto. E esse contra-ponto foi achado na figura de Oliver Queen, o Arqueiro Verde, que em uma história de Bob Haney e do próprio Adams, em The Brave and the Bold 85 (1969), perdeu toda a sua fortuna e o transformou em um herói urbano (inclusive com um novo visual). Ele era um liberal, para dizer o mínimo.

O título começou a estampar "Green Lantern/Green Arrow" em seu logotipo. A primeira vista, seria apenas mais um título team-up. E possivelmente foi isso que os leitores pensaram quando compraram o número 76, no começo de 1970.




Estava longe disso. O'Neil disse a que a série veio desde o seu primeiro número. O Lanterna Verde, por acaso, se envolve em um quebra-quebra entre moradores de um cortiço e do dono do lugar, um homem rico e que quer apenas coletar o seu dinheiro, não pensando em nenhum benefício a seus inquilinos. Ele fica do lado do homem, já que ele está sendo atacado pelos "rufiões" de plantão, mas principalmente porque ele parece respeitável. O Arqueiro Verde entra na briga e explica exatamente o que está acontecendo, para um atônito Lanterna, que só pode dizer "Mas eles estavam desrespeitando a lei".


Mas o que realmente afeta Hal Jordan, Lanterna Verde do Setor 2814, que segundo O'Neil era um "cripto-fascista que lutava pela Lei e Ordem do 'Establishment'" é o diálogo a seguir:


O Lanterna se redime, indo atrás do dono do cortiço, mas para o Arqueiro isso não é o suficiente. Ele quer que Jordan veja o que está acontecendo com a América. Que tente sarar as feridas de sua terra, não de distantes mundos.


Então, os dois, mais um dos poderosos Guardiões (os "chefes" do Lanterna Verde),  saem em uma peregrinação pelo país. E dão a chance a O'Neil para tratar de temas relevantes, como corrupção, racismo, poluição e os cultos que assolavam a América naquela época.


Snowbirds Don't Fly 

Em dois do mais famosos números da série (85-86, 1971), O'Neil ataca os problemas da droga e do vício. Colocando como o viciado ninguém menos que  Roy Harper, o Ricardito, antigo parceiro-mirim do Arqueiro Verde. A Marvel, meses antes,  havia feito um número de Amazing Spider-Man lidando com a mesma temática. O que gerou problemas com a Comics Code Authority e foi responsável pelo tal Código ser reescrito.

A história fez que O'Neil e Adams ficassem famosos e inclusive dessem palestras em universidades pelos EUA.  Afinal de contas,  um quadrinho estava ousando a lidar com esse tipo de problema.

Mas a ideia  de O'Neil para o fim da história era diferente. Ele  queria que Harper conseguisse se livrar do vício sozinho e se reconciliasse com o Arqueiro. O mesmo que o tratou como lixo quando descobriu seu vício. Oliver Queen, campeão das causas morais tinha pés de barro e enquanto tentava salvar o mundo, não percebia (ou fingia não perceber) o que acontecia com aqueles que estavam mais próximos dele. Considerando tudo isso, uma reconciliação mágica a la The Waltons seria totalmente inverossímil e anti-climática. Adams percebeu isso e mudou o final, que apesar de ter a lição de moral costumeira da série, não era tão cor de rosa como queria O'Neil.




A série teve uma receptividade enorme. Entrevistas em jornais, revistas, TV e rádio. As já citadas palestras em universidades. Cartas elogiando as histórias. Receita para o sucesso, certo? Uhn... Não. Julius Schwartz cancelou o título no número 89 (Abril-Maio de 1972). As razões podem ter sido várias. Primeiro, como admitido pelo próprio O'Neil, a animosidade entre ele e Adams estava crescendo cada vez mais. Vamos acrescentar os constantes atrasos de Adams (Schwartz teve que publicar um reprint no número 88) e muitas vezes o título não era publicado todos os meses.  Ou, é claro, poderia ter existido algo mais, um certo desconforto das corporações. Pessoalmente, acho que a resposta é mais simples: o título, apesar de ser um sucesso de crítica, não vendia exatamente o que deveria vender. É só lembrar o que aconteceu com New Gods, de Jack Kirby, outro sucesso entre os críticos, mas que não alcançava as metas da editora.



A história final foi divida em três partes e saiu como back-up em The Flash 217 a 219 (1972). Um fim lacônico para uma série tão aclamada.

O que deve ser entendido da série, que com o tempo ganhou a alcunha de "Hard Traveling Heroes" é que ela foi um divisor de águas. Temas que são lugares comuns hoje nos quadrinhos começaram a ser tratados de maneira séria, ou pelo menos tinham uma intenção séria, ali. E, apesar de achar que a palavra "contextualizar" muitas vezes é uma das mais antipáticas em qualquer língua, é justamente isso que tem que ocorrer quando se lê essas histórias pela primeira vez.

E o "ler essas histórias pela primeira vez" no Brasil aconteceu apenas, de forma plena, em 2006, mais de trinta anos após elas terem sido publicadas. A EBAL ignorou solenemente as histórias, possivelmente por receio que tais temas sociais não caíssem muito no gosto do regime vigente no país no início dos anos setenta.

A Editora Abril publicou seis das treze histórias, primeiro em Heróis em Ação (1984) e depois em Superamigos (1985). Em 2004, a Opera Graphica publicou uma edição com os números 83 e 84. Somente em 2006 a Panini vem a lançar todas as histórias em dois volumes de Grandes Clássicos DC (os números 6 e 7).




O'Neil, em sua introdução para uma republicação em sete partes lançada pela DC em 1984 diz algo que é extremamente válido: "Se tivéssemos a oportunidade, continuaríamos a explorar a alma de nossos heróis? Não sei. Mais provavelmente, não. Acho que voltaríamos ao drama social e, como já tínhamos feito histórias sobre cada problema contemporâneo que me preocupava, eu logo estaria vasculhando as páginas do New York Times em busca de ideias. No final, iriamos degenerar a série até a auto-paródia, um título da 'Causa do Mês'. Da forma como foi, assimilamos as lições que havíamos aprendido e fomos em frente, agora mais calejados. Tínhamos nos engajado por mais de um ano em um projeto que, ao mobilizar toda a nossa capacidade, nos mostrou exatamente quais eram as essas capacidades e como elas podiam ser melhoradas. Fizemos um trabalho significativo, tanto pessoalmente como profissionalmente. Tivemos nosso momento de fama, influenciamos outros como nós. E nos divertimos".

Ele encerra a introdução assim: "Não gosto de pensar muito nessas histórias. Elas são relíquias de alguém que jamais voltarei a ser. São de um período espiritualmente tão longínquo quanto o pleistoceno. Contemplar as histórias seria olhar na direção errada. Mas estou contente por elas existirem".

Eu também, Denny. Eu também. Apesar de hoje as histórias serem datadas e muitas vezes panfletárias, elas tiveram a sua função. E são um documento histórico que precisa ser lido por todos que gostam de quadrinhos. Além de tentar entender uma época através de sua arte.


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