Prata e Bronze

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O Brilho Fugaz do Bronze




O historiador dos quadrinhos Peter Sanderson escreveu uma vez que cada Era dos Quadrinhos se rebela contra a sua antecessora. É um ponto extremamente válido. A Era de Bronze é totalmente diferente da de Prata em conceitos e idéias. A inocência dos quadrinhos de prata acabou e outra visão, mais cínica e realista, do mundo começou a ser mostrada. Uma nova geração de autores tentou dar a sua visão do que vinha acontecendo ao seu redor. Nada mais óbvio. Uma história em quadrinhos, como qualquer forma de entretenimento, é apenas um espelho da sociedade e seus movimentos. Se na Era de Prata o otimismo era o mote principal a Era de Bronze foi como um soco no estômago de muitos leitores.

Afinal, não existia mais a competição espacial, a idéia que os Estados Unidos eram o lar perfeito da liberdade e justiça representado, por exemplo, pelo Superman. O Vietnã aconteceu, jogando na sala de estar da população o conflito, onde os “rapazes” iam morrer em uma selva asiática. Logo viria o assassinato de Martin Luther King. Watergate. E a crise do petróleo. Os autores começaram a perceber que não havia espaço para o Superman jogando boliche com planetas ou tentando escapar de mais uma tentativa de Lois Lane de descobrir sua verdadeira identidade.

Não existe realmente uma data (ou edição) certa para o fim da Era de Prata. É muito mais que algo que se pode demarcar. Zeitgeist, o pensamento dominante que tipifica e influencia a cultura de um determinado período.  Ou seja, assim como as suas antecessoras, a Era de Bronze teve um conjunto de “marcos”. Esses marcos podem pesar mais ou menos, dependendo de quem os estuda. E não há nada errado com isso.

O historiador Will Jacobs diz que (para ele, é claro) a Era de Prata termina com Julius Schwartz, o homem que a iniciou entregando o título Green Lantern (que foi um dos marcos daquela Era) para Denny O’Neil e Neal Adams em 1970. Na década de sessenta o Lanterna Verde era a personificação da era do otimismo, do “nós podemos”. E o que O’Neil e Adams fizeram foi transformá-lo em uma pessoa com dúvidas. “Esses dias se foram – para sempre – os dias que eu era confiante, seguro... Eu era tão jovem... certo que não cometeria nenhum erro!  Jovem e pretensioso. Assim era o Lanterna Verde! Bem, eu mudei... Estou mais velho... talvez mais sábio. Mas muito menos feliz”, diz Hal Jordan em 1973. Isso, na minha opinião, resume o tom da Era de Bronze, naqueles primeiros anos da década de setenta.


O mundo havia, é claro, se tornado mais cínico. Em Amazing Spiderman 122 (1973), Gerry Conway escreveu a história que para muitos seria inconcebível: matar a namoradinha de Peter Parker. Snap. Muitos historiadores dizem que a Era de Prata acabou com esse som, com o pescoço de Gwen Stacy quebrando. A “inocência”, como colocado pelo crítico Arnold T. Blumberg, terminou com o “snap” reverberando por toda a mídia.



Mas muito mais vinha acontecendo. A série de televisão Batman havia terminado, e o Batman estava sendo repaginado. A versão camp foi renegada. Os mesmos O'Neil e Adams trataram de trazer ele de volta as suas origens, um vigilante sombrio. Mort Weisinger, o editor dos títulos do Superman se aposentou, levando com ele todas as histórias mais simples e a sua visão ditatorial . O personagem mais poderoso dos quadrinhos sofreu um downgrade, muito antes de John Byrne fazer  isso em sua minissérie Man of Steel , em 1986.

Enquanto isso, Kirby encerra o que talvez tenha sido a maior parceria dos quadrinhos,  com Fantastic Four 102 (1970) e se muda para a DC, onde desenha, escreve e edita o Quarto Mundo. Kirby até então sempre foi associado a Marvel e a sua saída da editora foi como se  o mundo tivesse acabado para vários leitores. Exagero. Mas foi uma quebra de paradigma, com certeza.




Temas sociais eram apresentados. Uso de drogas, tanto em Amazing Spiderman 96-98 quanto em Green Lantern/Green Arrow 85, ambos de 1971. Ainda em Green Lantern/Green Arrow, a fase que hoje é chamada de “Hard Traveling Heroes”, onde os personagens saem para ver a América e suas desigualdades sociais, racismo e pobreza.



Até mesmo um título inócuo como Superman’s Girlfriend Lois Lane  (número 106, 1970, de Bob Kanigher) apresentou a história “I’m Curious: Black”, onde Lois se transforma em uma mulher negra durante um dia para sentir (literalmente) na pele o racismo enfrentado todo o dia por mulheres negras.




A Era de Bronze também experimentou com personagens que não eram super-heróis. Conan, The Barbarian, a versão de Roy Thomas e Barry Windsor-Smith para o personagem de Robert Howard abriu a porta para vários personagens de espada e feitiçaria durante toda a primeira metade dos anos setenta, tanto na Marvel quanto na DC.



E graças ao relaxamento do Comics Code, mais uma vez os personagens de terror davam as caras em  títulos regulares: Tomb of Dracula, Frankenstein, Monstro do Pântano. Os leitores recebiam, ávidos, todas as releituras apresentadas de seus monstros favoritos. 

A “blaxploitation” foi aproveitada também, com o aparecimento de Luke Cage, Black Lightning e alguns outros. Assim como a febre das artes-marciais. Nada foi deixado escapar durante o início da Era de Bronze. Os autores estavam ansiosos para criar novas experiências dentro do mainstream.

Assim como é difícil determinar quando ela começou, as controvérsias existem também sobre o seu término.  Existem as mais óbvias, como Dark Knight Return e Watchmen, que teoricamente iniciaram a próxima Era, a Moderna. Mas,  com certeza, nem todos os títulos do período saíram da Era de Bronze ao mesmo tempo, assim como nem todos os da Era de Prata passaram para a de Bronze ao mesmo tempo.  Nem poderia ser assim. O importante, creio, é que aos poucos os quadrinhos começaram a tomar uma outra direção. Não para melhor, muito menos para pior.


É apenas mais uma página virada. Literalmente.


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