A história editorial de Marvelman é possivelmente uma das
mais conturbadas de toda a indústria. O personagem inglês começou como uma
alternativa criada por Mick Anglo, artista e escritor, para a editora C. Miller
& Sons, que republicava em preto e branco as histórias do Capitão Marvel na
Inglaterra. Em 1953, tais histórias simplesmente deixaram de aparecer graças ao
famoso processo movido pela National
(hoje DC Comics) contra a Fawcett, com a alegação de que o Capitão
Marvel se parecia muito com o personagem principal da editora, o Superman.
O Capitão Marvel era extremamente popular nos dois lados do
oceano. A C. Miller & Sons não podia se dar ao luxo de ficar sem aquelas
histórias. Então, em 1954, Anglo teve a ideia de “criar” um personagem parecido
o suficiente para satisfazer os leitores. As mudanças foram, para dizer o
mínimo, cosméticas. Por exemplo, não era o menino Billy Batson que com a sua
palavra mágica SHAZAM se tornava o mortal mais poderoso da terra, mas sim Mike
Moran (aliteração proposital) que gritava “KIMOTA!” (algo como “atomic” ao
contrário). E a origem de seus poderes parecia ser de origem científica, ou
pelo menos o que a percepção leiga da época, acostumada com os pulps (muitos
deles de qualidade duvidosa), achava que era científico.
Marvelman foi publicado até 1963. O interesse por ele
passou. Os meninos cresceram. E a Marvel
Comics estava tomando o mundo de assalto. Inclusive a Inglaterra. Mas
ele ficou na mente de um garoto de imaginação fértil que havia lido o personagem
em sua infância: Alan Moore.
Em 1982, uma nova revista estava surgindo na Inglaterra. A
Warrior, que buscava abocanhar os leitores de outra instituição britânica, a
2000 AD, a revista semanal de ficção científica e fantasia. Moore, já adulto, foi
responsável por dois projetos. O primeiro era V for Vendetta, que falava sobre
um futuro próximo distópico mergulhado em um estado fascista. O outro era
Marvelman.
Moore declarou que desde que ele tinha lido Marvelman quando
criança, ele pensou em usá-lo em uma história cômica, nos moldes do
“Superduperman”, a famosa paródia de Harvey Kurtzman e Wally Wood para a Mad, ainda na década de
50. Ele disse que seria interessante mostrar Moran já adulto, não se lembrando
da palavra mágica que o transformava.
Quando lançou a Warrior, o editor Dez Skinn tinha decido
desde o início a trazer Miracleman de volta. O polêmico Skinn, considerado por muitos o
“Stan Lee britânico” já havia trabalhado como diretor editorial na Marvel UK (a divisão inglesa da Marvel) e
por um tempo fez que ela saísse do buraco que se encontrava. E fez que ele
estabelecesse contato com vários artistas que acabaram por trabalhar na
Warrior. Um deles era Alan Moore.
Mas Alan Moore não foi a primeira opção de Skinn. Ele queria
Steve Parkhouse ou outro Moore, Steve (nenhum parentesco com Alan). Ambos
declinaram, mas Steve disse que seu amigo Alan adoraria escrever a série. Skinn
concordou e pediu um projeto para a série. Os desenhistas, para Skinn, deveriam
ser ou Dave Gibbons ou Brian Bolland, mas ambos recusaram. Finalmente, a
contragosto de Skinn, Gary Leach foi escalado (e logo substituído por Alan
Davis).
Quando Moore finalmente pôs as suas mãos no personagem, a
ideia da comédia foi rapidamente esquecida e ele transformaria Marvelman em um
dos quadrinhos mais sérios, violentos e seminais da década de oitenta. E
possivelmente de todos os tempos.
Em Warrior 1, de Março de 1982, somos apresentados a um Mike
Moran adulto, casado e com terríveis dores de cabeça. Tendo pesadelos
recorrentes e incapaz de lembrar de uma
palavra que o atormentava durante o sono. Trabalhando como um repórter freelancer,
durante um ataque terrorista a uma usina nuclear ele vê a palavra “Atomic”
escrita em uma janela e a palavra volta a sua mente. E Marvelman está mais uma
vez no mundo. Ele lembra que ele e seus companheiros foram pegos em uma
explosão atômica e isso fez que ele se esquecesse de quem era, esquecesse toda a sua
carreira passada de super-herói.
Na verdade, esse cenário é apenas a desculpa para Moore
analisar alguns temas que depois ele trabalharia em várias outras de suas
obras. O fascínio com o conceito quase fascista do super-herói, a ideia de um
vilão simpático aos leitores e doses cavalares de niilismo.
Marvelman foi publicado em preto e branco nas páginas da
Warrior desde o seu primeiro número até o último, o vinte e seis. Infelizmente
a revista foi cancelada e Moore deixou inacabado tanto V for Vendetta quanto
Marvelman. Mas seu trabalho na Warrior e na 2000 AD havia feito que várias antenas se virasse para a Inglaterra. Moore
foi o primeiro de uma leva de autores que começou a trabalhar nos Estados
Unidos, a famosa “Invasão Britânica”.
Em 1983 ele foi contratado por Len Wein para escrever o
título terciário Saga of the Swamp Thing, com um personagem que nem de longe
inspirava simpatia. O título era, para ser gentil, apenas formulaico. O run de
Moore é um dos mais emblemáticos do personagem e lançou sementes (sem
trocadilho) para o futuro selo adultas da editora, a Vertigo.
Swamp Thing abriu caminho para Watchmen, considerado por
muitos, um dos melhores quadrinhos já
criados. E fez que a DC desse continuidade a V for Vendetta, primeiro
colorizando e reimprimindo o material que tinha sido publicado pela Warrior e
depois encomendando a Moore e ao artista David Lloyd a sua conclusão.
Eram favas contadas até que a outra “obra perdida” de Moore
aparecesse nos Estados Unidos. Marvelman, batizado agora como "Miracleman" (e
assim evitar problemas legais com a Marvel Comics) foi, a exemplo de V for
Vendetta, colorizado e começou a ser publicado. Não pela DC, mas sim pela
pequena Eclipse Comics em 1985.
Dessa forma, Moore pode continuar e finalizar a história que
havia começado na Warrior anos antes. Ele escreveu Miracleman até o arco
“Olympus” que terminou no décimo sexto número da Eclipse. E se algumas coisas
que ele tinha feito na história ainda na Inglaterra haviam chocado muita gente,
ele fez ainda mais. Muito mais mesmo.
Moore, depois de encerrar a sua participação no personagem
passou a incumbência a outro escritor inglês que estava começando nos EUA, Neil
Gaiman, que ficaria mais tarde famoso com Sandman. Ele fez um arco completo e
iniciou o segundo, escrevendo do 17 ao 24 (e deixando o 25 não publicado). A arte ficou a encargo de Mark Buckingham. Mas a Eclipse faliu e deixou várias séries inconclusas.
Entre elas Miracleman.
Em 1996, Todd McFarlane comprou as propriedades da Eclipse
incluindo Miracleman. Só que Gaiman dizia ter direitos também. Direitos
passados a ele verbalmente por Moore. Gaiman fundou em 2001 a Marvels and
Miracles LCC, uma companhia que buscava clarificar os direitos de Miracleman.
McFarlane já havia usado os personagens em Hellspawn e Gaiman o processou em
2002.
Mas o balaio de gatos ainda era pior. Skinn, quando começou
a série na Warrior não havia comprado os direitos de Mike Anglo. Ou seja, a
venda para a Eclipse e a subseqüente compra por McFarlane não tiveram nenhum
valor legal, fazendo que de certa forma todo o material publicado tanto pela
Warrior quanto pela Eclipse não fossem mais que edições piratas.
Isso fez que a Marvel (e os advogados da companhia que a
havia adquirido, a Disney) pudesse negociar os direitos com Anglo diretamente.
Tanto que em 2010 lançou um encadernado com as histórias de Anglo. Mas
obviamente não eram essas as histórias que a maioria dos leitores queria ver
republicadas. E a pedra da vez foi Alan Moore, que depois de brigas homéricas
com a DC (sobre Watchmen) não estava nem um pouco interessado em ver suas
histórias serem republicadas nos EUA, mesmo que fosse pela Marvel (outra
companhia que ele não tinha boas relações, desde a época que fez o Capitão
Bretanha para a Marvel UK).
Finalmente, Moore foi convencido a permitir a publicação
desde que seu nome não fosse citado.
Então em janeiro de 2014 a primeira edição
pela Marvel, desenhada por Leach e escrita pelo “escritor original” foi
colocada a venda.
Relendo essas histórias depois de tantos anos uma coisa pode
ser dita: elas não envelheceram. Aliás,
uma coisa me surpreende: a erudição de um Moore ainda jovem. E ele, desde
início (como lhe é costumeiro, diga-se de passagem), joga limpo com o leitor.
Iniciar a sua história com a citação de Nietzsche em “Also Sprach Zarathustra”
é a prova disso.
“Behold, I give you the superman” ... Esse é o mote de toda
da série. Ele todos os conceitos aparentemente sem noção e ridículos de Anglo e
os explora e explica sob a luz de Nietzsche. Para Moore, existia uma lógica no
estranho e colorido mundo dos super-heróis.
Em minha opinião, Miracleman foi o laboratório para as suas
grandes séries posteriores, como Watchmen e Swamp Thing. Em Swamp Thing, em
apenas um número ( o 21, “Anatomy Lesson”) ele desconstrói toda a história do personagem. Aquela única
edição é muito mais relevante que toda a fase de Len Wein e Bernie Wrightson.
Aliás, os paralelos entre “Anatomy Lesson” e todo o
Miracleman são muitos. Mas o principal é que até a fase de Wein, o Monstro do Pântano
era um ser humano que havia se transformado em uma planta. Moore determinou
que na verdade era uma planta que pensava que era um ser humano. Mike Moran é
induzido a pensar que era uma coisa, mas a verdade não é bem essa. E qualquer
coisa mais que escreva aqui será um spoiler BEM grande, então...
A primeira edição da Marvel está extremamente agradável aos
olhos, com novas cores e transferência de arte diretamente da Warrior, feitas
por Steve Oliff. E vários extras, como uma entrevista conduzida pelo CEO da Marvel,
Joe Quesada (e autor de uma das múltiplas capas variantes dessa edição), com
Anglo, pouco antes de seu falecimento.
Bem, quem não leu a série no início dos anos oitenta tem
agora outra chance. Não desperdicem.
Serviço
O Miracleman de Moore teve quatro edições publicadas no Brasil pela Editora Tannos, entre 1989 e 1990.
A Marvel continua publicando a série mensalmente e já lançou o primeiro encadernado em capa dura, A Dream of Flying.
A Panini Comics informou que pretende publicar a série no Brasil, ainda em 2014.
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